sábado, 21 de dezembro de 2013

O Ato de Matar (2012)



"Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários". O slogan do DocTV, projeto do governo federal para incentivo na realização de documentários nacionais, sempre me fazia relembrar um aspecto do cinema documental de que a realidade pode parecer mais real do que o próprio real que conhecemos, podendo resultar em cenários e narrativas quase inimagináveis.

O Ato de Matar (2012), é assim, não apenas borra a fronteira da realidade e da ficção, mas utiliza recursos cinematográficos e de encenação de modo a levantar perguntas sobre a natureza humana e sustentar sequências surreais. Está cotado como o melhor filme (não só documentário) de 2013 em muitas listas e por muitos já é considerado uma obra-prima.

Em meados dos anos 1960, a Indonésia foi um exemplo de país financiado pelos americanos para conter o avanço comunista no país. Como em muitos casos da História, tanto poder resultou em ditadura militar e genocídio, financiado pelo governo. O que surpreende é que até hoje a organização política não se modificou significativamente: o mesmo grupo paramilitar toma conta da segurança do país e os assassinos não apenas estão soltos, mas são glorificados por seus supostos atos de proteção à nação contra os comunistas.

O que o diretor, o americano Joshua Oppenheimer, propõe é: a produção financia um filme com a reencenação dos atos de crueldade desses veteranos, com a condição de que ele filmaria os bastidores e faria o documentário. Surpreendentemente, eles aceitam. Tudo sob a esperança de afirmar sua importância para a sociedade e recontar a história do país.

Toda a produção, direção e estética do filme dos indonésios fica a cargo deles. Registrado nas filmagens, o contraste entre crueldade, humor negro e o belo fica insuportavelmente chocante durante todo o documentário. Os homicidas e atores amadores se tornam cowboys, mulheres ou monstros para reencenar torturas de comunistas em locações internas, mas também em florestas exuberantes, um platô à beira mar com mulheres de vestidos rosa-choque entrando em um peixe gigante de aço e uma cachoeira com um quê de local divino, com mulheres sobre as pedras cantando para seus heróis nacionais, enquanto a água desce impiedosa. 

O protagonista do filme e do documentário é o veterano general Anwar Congo, um personagem enigmático que apresenta emoções de toda sorte ao longo do filme: orgulho, maldade, simpatia, arrependimento, solidão. Porém nunca se tem certeza se a crueldade das encenações é apenas um exagero de atuação, uma vontade (contada pelo próprio Congo) de ser como as estrelas de Hollywood, ou se, o que imaginamos  daquilo que realmente aconteceu, transparece diante dos nossos olhos.

Os renomados cineastas Errol Morris e Werner Herzog capitaneiam a produção executiva do filme e são enfáticos em dizer que você não vai encontrar soluções aqui, mas vai sair dessa história com perguntas que não imaginaria formular. Essa é alma do documentário. É não saber se os matadores realmente se arrependem, se sentem-se amaldiçoados ou se fariam tudo de novo. As dúvidas ficam entranhadas na perspectiva da câmera documental (entrevistas) e no registro do filme sendo feito, esse que pretende parecer ser apenas de suporte, mas que é baseado em uma realidade tão recente e próxima dos atores que parece ser surreal e, ao mesmo tempo, muito real.

Tente não arregalar os olhos ou levar as mão à boca em cenas como do close-up em Congo, ao encenar um estrangulamento embaixo da mesa, ou da última cena do documentário em que não há respostas para àquela ação (não vou falar, veja), apenas perguntas e mais perguntas.

Há críticas a O Ato de Matar quanto à legitimidade de uma produção dinamarquesa em financiar um filme que reencena massacres para servir de base para um documentário. No entanto, sem o recurso da encenação, não teríamos a força das imagens criadas, apenas relatos, documentos e versões de histórias. Se ele ainda faz parte do gênero "documentário" e se ainda pode ser rotulado de objetivo e jornalístico, pouco importa. O que nos leva à beira do sofá, não acreditando no que estamos vendo, são aspectos sobre a natureza humana: aquilo que é quase intangível em nossa vida, mas que aqui se pode ver, se não com clareza, mas com super contraste dos delineamentos das sombras do que são e do que foram aqueles homens.