terça-feira, 31 de maio de 2016

“Short Cuts” (1993)




Se a vida parece ser, em muitos momentos, desconexa e fugaz, por que não tratar em filme essa realidade, não só na temática mas também na esteticamente? É o que Robert Altman tenta fazer em “Short Cuts - Cenas da Vida” (1993), uma coleção de histórias sobre a vida em Los Angeles.

Baseado em nove contos e um poema do livro homônimo de Raymond Carver, Altman prefere dar unicidade a um grupo extenso de personagens que no livro têm suas histórias contadas de forma independente. São envolvidos uma temática com pontos em comum, mas difusa. Para não cair no clichê, julguemos apenas a obra cinematográfica, não o livro.

Todas as pessoas retratadas têm problemas conjugais ou de família. Não há grandes discussões sobre trabalho e dinheiro. As questões giram em torno de traição afetiva, majoritariamente entre casais. A mulher, vale comentar, quase sempre vista em posições subalternas.

O filme começa com uma ação das autoridades em jogar veneno em toda a cidade para matar uma espécie de mosquito perigoso à população. O sobrevoo dos aviões que derramam a substância é conhecido por todos os que aparecem na tela. O fim da história é acometido por algo que todos também sentem, um terremoto. É a dica de Altman: estamos no mesmo barco, e em crise.

Como um mosaico, um nó encontra pontas soltas que se ligam a outras conexões, e assim a trama ganha um corpo difuso. Sem justaposição, apenas choques entre os personagens. Detalhes mínimos que os fazem circular pelos mesmos ambientes e assuntos, num vaivém constante. Vendo de perto, a narrativa não é causal, portanto.

Um policial bonachão trai a esposa, que é amiga de uma pintora casada com um médico em uma união nada harmoniosa. O médico cuida de um menino atropelado por um carro. Quem dirigia o carro é uma garçonete que tem um relacionamento conturbado com um alcoólatra motorista de limusine. A garçonete tem uma filha que namora um maquiador para cinema. Esse jovem casal é bem próximo de outro casal, um limpador de piscina e sua mulher que trabalha em casa oferecendo sexo por telefone e cuidando das crianças.

Há ainda outros personagens na trama (são mais de 20 deles com níveis parecidos de relevância), mas a essência do parágrafo acima é: a quantidade de quês e pontos finais são proporcionais aos cortes na narrativa e à montagem fragmentada utilizada no filme. Uma coisa leva à outra, sem interferirem diretamente entre si. É aí que o filme perde força.

Tudo se passa em Los Angeles, mas não há ênfase no espaço, nem mesmo simbolicamente. Estamos em uma ampla sequência de superações e fracassos do corroído estilo de vida americano.

Apesar de abrigar um elenco estelar com ganhadores e indicados ao Oscar como Jack Lemmon (avô do menino atropelado), Tim Robbins (policial), Frances McDormand (dona de casa que sai com muitos homens e desperta a ira do ex-marido), Julianne Moore (pintora), Tom Waits (motorista), Robert Downey Jr. (maquiador), Jennifer Jason Leigh (prostituta por telefone), a história recortada não se sustenta.

As atuações apresentam brilhos individuais, mas quando queremos entrar na cabeça de tal personagem, o foco da narrativa já está em outro ponto, em um diálogo trivial que serve de ponte para outro pequeno (anti)clímax.

As cenas são vinhetas de si mesmas. São três horas de atração do espectador, frustração e nova construção. Resultado: cansaço.

Desconcertante e ótima cena de Julianne Moore; veja

Os três momentos de destaque crescem com o absurdo (no bom sentido) e abordam sexo. São eles: os gemidos e palavrões de Jennifer Jason Leigh ao simular um ato sexual por telefone trocando a fralda do filho; o monólogo de Jack Lemmon, sem motivo aparente, contando como e por que transou com a tia do filho ao encontrá-lo depois de anos e a clássica confissão de traição, com detalhes, de uma Julianne Moore altiva e seminua, claramente para deixar o espectador tão desconfortável como o marido interlocutor. Mérito do roteiro e dos atores.

Essas cenas tiveram tempo para funcionar, são razoavelmente demoradas. O que não acontece com todas as outras tomadas do filme. Paradoxalmente, os muitos cortes e as cenas curtas não dão agilidade à narrativa. Ficamos sem gancho para nos apegar às situações e o tempo demora a passar pois não temos a que esperar na próxima volta dessa história cíclica e tortuosa.

O tom banal sugerido por uma trilha sonora jazzy e irônica também contribui para esse desapego. Reduz a gravidade de traições, atos violentos, mortes. Altman poderia seguir por esse caminho e chegar ao nonsense, aí sim uma chacoalhada no espectador como nos exemplos acima, mas não gera atritos para tanto. O diretor mostra um grande mosaico e esquiva-se da profundidade: fica no zero a zero da descrição.

Mas tudo isso não são exatamente os referidos short cuts (cortes curtos, não atalhos) almejados pelo filme? Em tese, sim, mas concisão e pequenas grandes histórias não devem ser antíteses de mergulhos psicológicos.

Tentando responder à pergunta que abre o texto, espelhar cotidianos no cinema pode ser até desejável, mas friccioná-los para além de seus limites pode fazer nossas próprias ficções mais críveis. São nesses raros momentos, descritos acima, em que “Short Cuts” é relevante.


(Em tempo: ainda não vi Nashville).