sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Flamenco de quintal

Pense numa noite de quinta-feira sem propósito nenhum a não ser escutar música no quintal. Pense no samba, no pagode. Os amigos vão chegando, a cerveja é barata no bar do lado e alguém traz o pandeiro e violão. O quintal fica cheio e a noite mais feliz para esses simples apreciadores de papo, música e cerveja.

Pois ontem encontrei por acaso exatamente isso, só que era Flamenco. Andando pela Rua Castellar, procurando um bar de jazz, um cara na rua disse: “Hay gente aquí, Flamenco, sabes?”

Claro.

Através de uma porta grande e velha, havia um caminho longo dentro de um prédio, acho que existiam apartamentos e pequenos escritórios. Tudo velho, tudo sujo. Ao fim do corredor, um quintal grande com umas 100 pessoas em volta de duas mulheres e um homem tocando violão. Era só chegar para ouvir o Flamenco.

Chão de terra e cimento, paredes com cores perdidas pelo tempo, reboco saindo de tudo. As pessoas, em sua maioria jovens, sentavam nas famigeradas cadeiras de bar. Quem sobrava assistia de pé. Todos em volta de um tablado de madeira.

Eu, longe, podia ouvir uma voz muito forte e um som de percussão que me fazia perguntar: “Parece cajón, mas cadê?”. Esticando a cabeça por cima de todos pude ver que o som saía das sapatilhas da dançarina machucando o tablado do local.  

Eram: um senhor careca no violão, uma menina dançando e a cantora, atração à parte, vou deixar pro final. A música tinha muitos tempos, paradas. Há partes que o violão toma conta, mais baixinho e triste. Outras em que apenas os pés dos três trabalham ou quando só a voz da cantora envolve o lugar de melancolia, quase à capela só com suaves acordes de violão. A dançarina, ao mesmo tempo em que é a estrela, representando a beleza da melodia, também é pulsante, ela é o cajón. Quando pisa o chão, a parte de trás do pé gera o som mais forte, à frente o som mais fraco e as pontas dos pés criam um impacto surdo. Essa junção de beleza e choque impressiona.

Mas o que me deixou viajando foi como a cantora se expressava na mesma sintonia da música. Era uma mulher simples, morena, cabelo castanho liso, calça jeans e bata azul, tinha 40 anos aparentemente. Uma idade boa pra lembrar o passado e sentir a dor daquilo que já passou e não volta mais, creio eu. Ora era uma mãe chorando a partida do filho ou do marido cafajeste, ora estufava o peito para seduzir o novo amor. 

Quando atingia notas altas e longas, ouviam-se uns “vale” e “guapa” de velhos do local. A cada verso que gritava as veias do pescoço saltavam. Segurava na barra da bata, puxava a roupa com uma mistura de êxtase e dor. Batia palmas que davam ritmo à dança e todos acompanhavam (como no pagodão). E também igual ao no Brasil há muitas passagens nas letras em que se fala com orgulho da própria música. Exemplos:

“Ese Flamenquito guapo si no es mio, no es de nadie”. (Aqui.)

“Samba, a gente não perde o prazer de cantar/ E fazem de tudo pra silenciar/A batucada dos nossos tantãs”. 
(Conhece, né? Conhece.)

Ao final, os rostos suados puderam sorrir ouvindo os longos aplausos. Ainda tinha cerveja e a noite continuava, mais feliz. E pode não ter sido o melhor flamenco do mundo, mas tenho certeza que foi um autêntico flamenco, aqueles de fundo de quintal.

Um comentário:

  1. Agora me deu uma vontade enorme de ir a esse pagodão do flamenco *___*. Onde fica essa calle Castellar?

    ResponderExcluir