quarta-feira, 4 de abril de 2012

O cheiro do ralo – as coisas


As coisas acontecem independentes da gente. Nós é que depois criamos o seu sentido.




As coisas não são apenas coisas. Podem ser apenas coisas, mas em geral são mais que isso por que a gente quer que sejam. São carregadas de significado, de história, de lampejos de ações, de esperança, de desespero. São luzes que indicam caminhos dentro da sua cabeça. Clareiam uma tal verdade e encoberta todas as outras verdades. Epifania ou paranoia, as coisas são independentes em sua existência se vistas distantes. De dentro de um contexto, de uma estória, de uma casa, de uma mente, adquirem força de trilha a ser seguida, de destino, mesmo que dure o tempo de uma obsessão. E isso sempre acontece.

[spoiler, mas leia.]

O cheiro do ralo: O ralo fede e isso o incomoda. Seus clientes vão perceber e ele não quer que pensem que ele cheira mal. Mas então ele se importa com os clientes? Não. Os maltrata, mente, joga. Natureza da negociação diária talvez, o homem aprende a ser impassível, saber o que quer em pouco tempo, saber o que vale e o que é inútil. O fedor do ralo não é insegurança, mas a coisa que ele precisa para estar de acordo com as suas conjecturas, os seus caminhos.  O mau cheiro influencia o seu modo de ser. Mas fedia e por isso tampou o ralo. O cheiro acabou. A vida virou uma merda. Tornou-se obcecado pela nudez barata e foi à delegacia por isso. Ainda seguro com as suas inseguranças, ele estava bem até que estava sem a bunda. E o cheiro do ralo fazia falta. Que faz? Constroi outra coisa, outra obsessão.

A bunda: De início a moça era uma garçonete simpática que não poderia dar nada além de uma transa vazia a se esquecer facilmente. Mas ao ver a bunda, ele se esquece do resto, do todo. Começa a fazer conjecturas sobre a bunda como se a possuísse, imaginando-se apenas com ela, a bunda. Para isso comeria todos os hambúrgueres de merda do bar, beberia todos os refrigerantes só para vê-la (a bunda, somente ela) empinar-se para ele. Ao longo dos dias, chega a uma conclusão devastadora. “Não quero casar com essa bunda. Não quero convites indo para a gráfica. Quero comprar ela”. Ela tem um preço, merece um preço, tem um valor. Valor criado por ele e só por ele. Nesse sentido ele é livre em partes. Não se importa com as pessoas fora de seu círculo (ou da bunda?), com a mulher recém-largada com os convites impressos na gráfica, com a sua alimentação... É livre para ficar preso à sua bunda. Não quer conquistá-la (a moça), não quer nada mais daquilo que anseia. Só ela, a bunda, é o motivo para acordar todos os dias, trabalhar, comer, etc.

O olho: Se vê fascinado por um olho que diz ser de um soldado na Segunda Guerra Mundial. Seu pai também estava na guerra. Era tudo o que precisava para ter o seu pai de volta à vida. Era o novo amuleto, brinquedo, amigo e muleta existencial dele. Mostrava a todos com orgulho. Via com auxílio dele, queria que ele visse com ele.

O cenário: Uma loja de quinquilharias, ou melhor, de coisas de todos os tipos. Uma pequena versão do mundo em que vivemos. A parte pelo todo. Como a bunda. Um galpão aparentemente vazio de vida e cheio de pó, mas que continha a quantidade de histórias que ele quisesse e criasse. Como a bunda... Apesar de ser uma senhora bunda ela, abstraída de símbolo, não era nada mais que uma bunda, contudo para ele era um caminho a seguir, um destino, uma coisa.

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